Gaudêncio Torquato
Jornalista e professor (USP) - gt@gtmarketing.com.br
Dissimular é uma arte da política, particularmente praticada nos ciclos eleitorais. Em se tratando do Brasil, convenhamos, essa aptidão é desenvolvida com naturalidade, eis que a expressão da verdade não assume status de extremo rigor quanto se observa em países de cultura anglo-saxônica. Sob essa premissa, não causam comoção manifestações, atos, atitudes e abordagens feitas na atual quadra, também conhecida como pré-campanha eleitoral.
Em entrevista ao jornal "El País", Lula confessa ser um cidadão "multi-ideológico". O termo, que em tempos idos poderia soar como atentado ao pudor de um PT monolítico e sacralizado, foi usado para abrigar a pluralidade que torna semelhantes entes políticos neste ciclo de desideologização. Luiz Inácio não quer mais parecer o radical de outrora, sentimento apontado por outra palavra - multinacional - que apensou ao desabafo, como se fosse sinônimo. Ora, graças à multinacionalidade e às ideologias múltiplas que agregou ao perfil, tornou-se palatável aos olhos de líderes mundiais, enquanto por aqui passou a ser visto como ente acima de partidos.
O processo mutante, convém lembrar, vem lá de trás, quando abriu o balcão do "Lulinha paz e amor", sob a bandeira de uma Carta aos Brasileiros (2002) cujo mérito foi expurgar de sua feição vestígios de "bicho-papão". A antiga carranca amedrontava. A engenharia transformativa ganhou amplitude. Assim, Lula arrastou o PT para o meio da roda, onde hoje o partido convive, sem o antigo manto de vestal, com siglas cimentadas na argamassa da aliança governista.
"Metamorfose ambulante", como já se classificou, Lula é uma figura permanentemente vitaminada por circunstâncias. Ao mesmo jornal espanhol disse que resolveu, "primeiro, construir o capitalismo para depois fazer o socialismo". Aliás, Delfim Netto, quando ministro da Fazenda (1979-1985), cunhou a frase: "Primeiro, deixar o bolo crescer para depois repartir". O professor defendia a ideia de que a riqueza, para ser distribuída, deveria, antes, ser criada. O capitalismo imaginado por Lula não seria a riqueza pensada por Delfim? Se é isso, a conclusão é inevitável: o Lula de hoje é o Delfim de ontem. Ou, se quiserem, Delfim pelejou, pelejou, até conseguir plantar uma frondosa árvore na seara do lulismo.
Em outra imbricação aparecem, lado a lado, o escolado atual presidente e o scholar sociólogo, o ex-presidente Fernando Henrique. Luiz Inácio costura firme o presidencialismo de coalizão, tarefa a que o tucano tanto se dedicou. Se Lula alcança mais sucesso nessa tarefa, é por conta do multilateralismo de que hoje é fanático seguidor.
Há mais pontos de intersecção. FHC é frequentemente cobrado por adversários pela frase (que nega ter dito): "Esqueçam o que escrevi". Lula disse algo parecido: "Esqueçam as bravatas que eu disse nos palanques".
Como se vê, a confraternização de verbos é uma constante na mesa da realpolitik. Essa é a carga simbólica que Lula passa para Dilma Rousseff.
Jornal O Tempo
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